João acordou no horário habitual,
para trabalhar. Seria um dia como outro qualquer, não houvesse algo de estranho
no ar, a começar pela expressão de Maria, já desperta, mas ainda recostada na
cama. Seus olhos tinham um brilho intenso, acompanhado por um sorriso
enigmático e ligeiramente divertido.
Sem dar mais importância ao detalhe,
João entrou no banheiro, para a sua higiene matinal. Ao sair, Maria continuava
recostada sobre o travesseiro, absorta com as mensagens virtuais. Incomodado
com a postura dela, João disparou o comando para que ela tomasse a iniciativa
de sua rotina habitual, colocando tudo no seu devido lugar: _ Vamos tomar café?
Maria olhou para ele, com seu olhar
brilhante e sorriso enigmático e respondeu: _ Querido, bom café para você! Hoje
é meu primeiro dia de greve!
_Greve de que, se você é Dona de
Casa?
_Por isso mesmo! Respondeu ela. E
continuou: _Quando é que Dona de Casa se aposenta?
Nunca!!! Respondeu João
automaticamente. Desde que o mundo existe é assim!... É a ordem “natural”
das coisas! As mulheres nasceram para cuidar da casa, do marido e dos filhos!
_E você acha isso justo? Perguntou
ela.
Pensando que talvez Maria estivesse
“naqueles dias” de mau humor, João decidiu sair de casa mais cedo e tomar café
na lanchonete perto do escritório, onde uma simpática e atenciosa garçonete o
servia com presteza... Seguindo de carro pela avenida principal, viu alguns
grupos de homens em conversas agitadas pelas esquinas. Embora achasse estranho,
não deu muita atenção ao fato. João se orgulhava de ter foco e objetividade. Ao chegar à lanchonete, estranhou que, diferente
do habitual, só houvesse homens no recinto e a simpática garçonete não
estivesse lá. Quando o garçom veio atendê-lo, perguntou pela moça.
_Ela hoje está em greve! Respondeu o
garçom, com um sorriso irônico.
Tal resposta provocou certo desconforto
no estômago de João, mas de imediato, avistou um amigo entrando na lanchonete e
fez-lhe sinal para vir sentar-se à sua mesa.
_E
aí! Tudo bem? Indagou.
_Tudo
bem como, cara! Minha mulher parece que ficou maluca! Acordou hoje, pela manhã,
dizendo que está entrando em greve!
GREVE!!! Soou o alarme dentro do
João, provocando-lhe taquicardia. Neste momento, um dos homens no grupo da mesa
ao lado, levantou-se e falou para os demais presentes: _ Algo de
muito errado está acontecendo, hoje! Descobrimos que nossas mulheres entraram
em greve. Vejam que absurdo! Parece que combinaram pelo Whatsapp. A campanha
está viralizando nas Redes Sociais!...
_ Mas o que elas estão
reivindicando? Perguntou João.
_Amigo! A lista é enorme e ridícula!
Estão exigindo salários por cada uma das tarefas desempenhadas em casa:
Cozinheira, lavadeira, arrumadeira, enfermeira, babá, administradora,
contadora, economista, mediadora de conflitos familiares... Algumas mulheres
mais radicais estão reivindicando também pagamento pelas horas dedicadas ao
sexo. Que coisa mais estapafúrdia!!!
_Mas eu pago faxineira! Argumentou o
homem sentado numa mesa mais distante. O orador continuou, mostrando-se bem
informado sobre o movimento grevista feminino:
_ Elas dizem que os serviços
prestados por terceiras podem ser descontados da lista. As que trabalham fora,
estão argumentando que este termo “trabalhar fora” é discriminatório e
evidencia a sobrecarga do trabalho feminino. Dizem que trabalham fora, dentro,
à direita, à esquerda, em cima, em baixo (rrss)!... As mulheres piraram de vez!
As provedoras, argumentam, ainda, que nunca deram despesas para os seus
maridos, inclusive em relação aos planos de saúde dos filhos, descontados em
seus contra-cheques. Também sinalizam os excelentes presentes de Natal,
aniversário, Dia dos Namorados, partilha de despesas de jantares e viagens. Muitas
alegam que sustentam a casa e os maridos. Diante das novas informações, o alvoroço na
lanchonete generalizou-se pelos presentes, evidenciando forte indignação.
_Que coisa maluca! Só quero ver
quanto tempo vai durar isso! Resmungou para si mesmo, um senhor sentado numa
mesa isolada. Já havia algum tempo ficara viúvo e morava só, fazendo ele mesmo
suas tarefas domésticas, por conta dos parcos recursos da aposentadoria.
Sentia-se a salvo do problema...
Enquanto a notícia ia-se espalhando
pela cidade, os aturdidos cidadãos descobriram, através do noticiário
(masculino) de plantão, que o movimento havia tomado proporções nacionais e
começava a expandir-se para outros países, principalmente os países latinos e
muçulmanos, onde a cultura machista predominava.
Ainda confusos e sem terem organizado
um consenso em termos de ações repressivas em relação à “Greve de Mulheres”, os
homens decidiram seguir para seus locais de trabalho, com a expectativa de que,
à noite, tudo houvesse voltado ao “normal”, com possibilidade de pazes entre os
lençóis perfumados com alfazema... Mas não foi o que aconteceu. Parece que não
havia ninguém para perfumar os lençóis com alfazema... Ao chegar à casa, João
encontrou Maria servindo o último alimento no jantar das crianças, que animadas,
esperavam Mamãe, alegremente, para novas brincadeiras. As grevistas haviam combinado entre si, que os serviços essenciais devidos às
crianças, idosos e doentes seriam mantidos. Desconhecendo esse detalhe, João
respirou fundo e ainda segurando a sua irritação, saiu do apartamento em busca
de algo para comer na rua. Neste momento, temeu que o restaurante mais próximo não
tivesse um cozinheiro homem. Era só o que faltava acontecer!...
Em represália ao abuso, João
resolveu dormir no sofá da sala e nele permaneceu durante a semana em que a greve
continuou. Até o oitavo dia, quando percebeu que suas roupas de trabalho estavam
amontoadas na área de serviço e que não havia mais cuecas para trocar... Neste
momento sua boca explodiu em palavrões. Falou todos que conhecia e inventou
mais alguns, tamanha era a sua raiva. Decidiu vestir a mesma roupa do dia
anterior, juntando as demais num saco de lixo, para deixar na lavanderia.
Quando lá chegou, o dono o informou que não poderia receber suas roupas porque a
duas funcionárias também estavam em greve e ele não sabia como ligar as
máquinas. Retornando com sua trouxa de
roupas sujas ao carro, João lembrou-se de que, em casa, nunca havia ligado a
máquina de lavar, tarefas habituais de Maria e da faxineira. Como fazer? Ele
não poderia ficar indefinidamente sem trocar de roupas. Será que o manual de
instruções da máquina ainda estaria em alguma gaveta? Mas quem organizava todos
os papéis e documento da casa era Maria... Será que Maria estaria disposta a ensiná-lo a usar a máquina de lavar? Sentiu-se
humilhado com a situação e pensou em outra estratégia: _Quanto ela poderia
cobrar se ele lhe propusesse pagar pelo serviço?... Mas não teve coragem de lhe
propor, esperando que a situação ainda se resolvesse por si mesma.
Chegando à casa, com as roupas
sujas, João viu que Maria brincava com as crianças, enquanto a máquina lavava
as roupas dela e dos menores. Pura discriminação! Pensou, ressentido. Para onde
foram as juras de amor e os votos de fidelidade na riqueza e na pobreza? Para
seu maior desconforto, a greve havia chegado, também, ao leito conjugal...
Indignado e convicto de suas razões pessoais, João considerou que não havia
mais clima para a manutenção de nenhum tipo de voto e decidiu ir dormir num Motel.
Precisava espairecer e se divertir um pouco. Mas, para seu total desespero, as
prostitutas também haviam aderido à greve. Alegavam que seus corpos mereciam
respeito e não mais seriam usados como vasos de esperma. Protestavam contra os
abusos sexuais na infância, alegando que esses traumas às conduziram às
ruas. O dono do prostíbulo, já bastante calvo, arrancava seus últimos fios de
cabelo, gritando, desesperado: _Estou completamente falido!!!!
Passados quinze dias, João viu
emergir, à sua volta, uma série de imprevistos que nunca havia imaginado: Maria
decretara que o banheiro da suíte seria para o seu uso e o das crianças. No
banheiro social, a toalha sempre úmida, contava os dias em que permanecera ali,
sem sequer tomar sol ou ser trocada. As roupas de cama, jogadas no sofá da
sala, onde agora dormia, não estavam em melhores condições, com a fronha do
travesseiro amarelada pelo suor do seu rosto. Enquanto isso, a ‘Greve de Mulheres” continuava firme e forte.
A Primeira Dama, “Bela, Casta e do Lar”, também decidira aderir ao movimento,
assim como as esposas e amantes de todo Congresso Nacional. Sentindo-se
pressionado, o Presidente Temeroso, com olheiras profundas e um terno surrado,
por conta da greve de suas assessoras femininas, fez um pronunciamento em cadeia
nacional, propondo ceder às reivindicações. Afinal, segundo seus também
temerosos assessores, a população feminina era maioria, com menor índice de
analfabetismo do que o masculino e muitas delas, financeiramente independentes
e provedoras de família[1]. Como
haviam deixado isso acontecer?... A situação, agora, estava totalmente fora de
controle!
Vereadoras, Deputadas e Senadoras
preparavam Projetos de Leis para a promoção do equilíbrio entre o masculino e o
feminino; entre o prover e o cuidar dentro de cada ser humano, para por fim a
Guerra dos Sexos, com base no livro do mesmo nome, de autoria do Psicólogo
Frances Pierre Weil, felizmente disponível para todas, em PDF[2].
Para dar suporte ao movimento, as parlamentares decidiram também criar
“Círculos de Mulheres” em cada cidade, como fóruns para a síntese das
principais questões emergentes: A principal bandeira era a aposentadoria
efetiva para todas as Donas de Casa, aos 70 anos, criando estruturas sociais
que dessem suporte à proposta de acabar com o modelo social desumano, que
forçava mulheres idosas a cuidarem de suas casas, enquanto se agüentassem de pé.
Havia muitos conflitos a serem mediados[3]. Começaram
a estudar e criaram uma Biblioteca, com livros pertinentes ao assunto. Realmente,
a vida nunca mais seria como antes. As mulheres haviam aprendido a prover e os
homens precisariam, urgentemente, aprenderem a cuidar... Inclusive de si
mesmos!
João acordou meio tonto, no meio da
noite, sentindo a boca seca e o coração palpitante. Para seu espanto, percebeu
que Maria dormia tranquilamente ao seu lado, na mesma cama. Não compreendeu.
Quando chegou à cozinha, olhou para a área de serviços e viu suas roupas no
secador, como de hábito. Percebeu que havia tido um pesadelo. Um terrível
pesadelo, diga-se de passagem!... Passou o resto da noite insone, refletindo
sobre o acontecido.
Ao amanhecer, levantou-se devagarzinho, para não acordar Maria... Depois da higiene pessoal, preparou o café,
colocou numa bandeja, não sem antes acrescentar uma pequena e singela flor,
numa jarra-tulipa, deixando tudo na mesinha ao lado dela. Viu que ali havia
também livros que nunca percebera. Entre eles, O Fim da Guerra dos Sexos, de
Pierre Weil[4]...
Teria tido um sonho premonitório? Pensou. Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha
dorsal... Não teve coragem de acordá-la. Qual seria a sua reação quando despertasse?
Qual será a reação de todas as mulheres, quando despertarem?... Este pensamento
fez João estremecer, numa sucessão de sensações, características do
surgimento de um novo estado de consciência...
Foi para o trabalho, mas, a princípio, não comentou nada com seus
amigos. Por enquanto, era um segredo bem guardado no seu coração. Iria começar
a falar com eles, aos poucos. Seria um pioneiro, pois percebera que os privilégios
masculinos estavam chegando ao fim. Passou a prestar mais atenção ao modo como
Maria fazia as coisas. Começou a aprender com ela e a chamar seu filho mais
velho para colaborar. Começou a perceber que também no escritório, o cuidar
ia-se infiltrando.[5] Gradativamente
compreendeu que não era exatamente um pesadelo, mas um processo de
transformação social justo e evolutivo. João sentiu-se emocionado e constatou
que havia despertado dentro de si mesmo a capacidade de cuidar... Agora, era um
Ser Humano Inteiro! Assim como Maria também aprendera a prover. Percebeu
que agora estavam mais unidos do que antes e que, cada um por seu lado, havia desenvolvido mais entendimento sobre as necessidades do outro. Isto os
aproximava e permitia que compartilhassem interesses em comum. João e Maria
criaram um Círculo de Casais, com o objetivo de por fim à Guerra entre os Sexos,
com reuniões mensais, cada vez mais concorridas e bem humoradas, onde muitos
outros casais descobriam novas facetas de si mesmos. Como medida de segurança
para o projeto, a cada novo grupo, este conto era distribuído para despertar a
consciência evolutiva e não mais haver necessidade de “Greve de Mulheres”...
Sueli
Meirelles, em Nova Friburgo, 15 de Junho de 2018.
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Professora, Pesquisadora e Especialista em Psicologia Clínica (UGF_1986)
MBA em Gestão de Projetos. Consultora em Desenvolvimento Humano, Saúde
Integral, Ecologia Integral e Educação para a Paz. Escritora e Palestrante.
Wahtsapp:
55 22 999.557.166
[1]
Dados Estatísticos de 2018: https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/geografia/populacao-feminina-no-brasil.htm
[2]Link
para o livro O Fim da Guerra dos Sexos em PDF: https://ramrawell.firebaseapp.com/38/O-Fim-da-Guerra-dos-Sexos.pdf
[3]
Livro de Sueli Meirelles: http://sueli-meirelles.blogspot.com/2017/06/linguistica-para-mediacao-de-conflitos.html
Excelente!!!
ResponderExcluirAmiga. Obrigada!
ResponderExcluirAmei. Gratidão
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