Era uma mansão em estilo neoclássico, com suas belas colunas frontais emoldurando a ampla escada, que conduzia à varanda e à porta que dava acesso ao rol de entrada.
À sua volta, árvores seculares proviam a sombra das alamedas circundantes, em meio aos jardins bem cuidados. O Jardineiro era "Seu Thimóteo. Figura miúda, frágil e antiga personagem daquele lugar. Seu pai havia sido cocheiro da ilustre família, nos velhos tempos das tílburis. Nascera e fora criado nas dependências de serviço daquele casarão. Desde cedo "menino de recados", começou, nas horas vagas, a familiarizar-se com o velho Antero, o jardineiro de então. Com o falecimento deste, o jovem Thimóteo assumiu o seu lugar, pois já havia muito tempo, ajudava-o nos cuidados daquele jardim.
Setenta anos se haviam passado. Milhares de flores haviam nascido e morrido, em suas efêmeras vidas, assistidas por Thimóteo. Milhares de vezes, ele repetira as mesmas tarefas, no seu dia-a-dia. Um capim aqui, uma broca acolá, uma lagarta teimosa e faminta ameaçando as folhas... Quanto trabalho suas mãos calejadas haviam realizado. Centenas de vezes espetara os dedos nos traiçoeiros espinhos, escondidos por detrás das folhas viçosas das lindas roseiras. Ingratas! Era assim que lhe retribuíam os incessantes cuidados!?, lamentou-se ele. E agora, então. O casarão estava fechado, aguardando o inventário e a partilha de bens entre os herdeiros. Apenas uma vez no mês aparecia um dos donos, em rápidas visitas, para ver se estava tudo em ordem. Ao jardim, nenhum elogio. Apenas as costumeiras cobranças de tarefas. Ninguém para apreciar as flores, sentir a brisa refrescante, pisar na relva macia... ninguém para caminhar pelas alamedas bem cuidadas, sentar-se nos bancos à sombra das copas das árvores... apenas a solidão. A solidão que se iniciara no casarão e que, passo-a-passo, ano-a-ano, fora-se expandindo até à sua casa, lá atrás, no quintal, espalhando-se por todo o jardim e entrando de vez no seu coração. Oh! Como doía fundo! E isso já fazia tanto tempo!... Como essa solidão pesava! Seus ombros eram testemunhas disso. Desanimado, "Seu"Thimóteo recostou-se na sombra de uma árvores, a mais frondosa, e pôs-se a olhar para o vasto jardim. Os olhos vagueando, cansados, por toda aquela beleza não usufruída, não compartilhada... Seus olhos foram ficando cada vez mais pequeninos e finalmente, o cansaço, aquele cansaço de setenta anos, selou os pequenos e límpidos olhos de "Seu Thimóteo", num sono profundo. Tão profundo, que ele mergulhou num sonho em que se via aprofundando-se mais ainda, dentro de si mesmo. Via-se minguando, diminuindo, ficando pequeno, muito pequeno, quase do tamanho de uma daquelas formigas predadoras que insistiam em atacar as "suas" plantas, as quais defendia com ardor. Tal pequenez pareceu libertá-lo daquele corpo cansado. Viu-se livre, mas, coisa esquisita, assim pequeno, parecia-lhe estar mergulhando numa outra dimensão, onde o jardim, agora um imenso universo, mostrava-se cheio de vida e atividade, como se, num passe de mágica, tivesse se tornado habitado por minúsculos e estranhos seres. Começou também a perceber sons. Estranhos sons. A voz de uma formiga! Seria isso possível? Formigas não falam! Isto certamente ele sabia. Era bem verdade que ele falava com as flores, enquanto cuidava delas. Mas ele era gente! Agora, formiga falando? Que estória era essa?...
Aos poucos, em meio ao turbilhão de pensamentos que lhe ia tomando a mente, começou a perceber que, na verdade, a formiga não parecia estar falando. Era como se a sua compreensão é que se tivesse modificado. Ele se tornara capaz de compreender "pensamentos de formiga". Ah! Devia mesmo estar caducando!... Mas caduquice ou não, sua curiosidade foi maior, levando-o a sair de onde estava e aproximar-se da humilde carregadeira. Percebeu uma luminosa trilha que lhe guiava os passinhos apressados. O cheiro da trilha era diferente ou alguma coisa parecia indicar o caminho certeiro à formiga trabalhadeira. Ele não compreendia muito bem. Percebia apenas que ela seguia o seu caminho, empenhada em realizar sua tarefa de vida, parecendo-lhe convicta de que era o seu dever. Pouco a pouco, começou a perceber toda a ordem estabelecida naquele universo reduzido, tão diferente do complicado mundo dos seres humanos.
Mais familiarizado com sua nova condição, Thimóteo decidiu ver de perto aquela roseira vermelha, sua preferida, pela qual muitas vezes espetara seus dedos já calejados. Ela estava carregada de novos botões e ele pensou que seria interessante vê-los de perto, agora. Qual não foi a surpresa quando, ao aproximar-se dela deparou com pequenos e estranhos seres que se ocupavam da modelagem das novas rosas, mostrando em suas mentes o modelo da rosa depois de pronta. Thimóteo ficou bastante confuso. Afinal, ele sempre cuidara do seu jardim sozinho. Nunca lhe ocorrera que, em seu trabalho, estivesse recebendo algum tipo de ajuda. Vencendo os seus receios, aproximou-se de um daqueles seres. Como em sua experiência anterior com a formiga, estabeleceu-se uma comunicação mental com a figurinha. A Criatura identificou-se como um ser elemental, um gnomo, um pequeno ser espiritual, construtor da forma, como ele lhe disse: _Deus tem modelos para tudo!, acrescentou o pequeno ser. Quando você planta, você faz a sua parte na Grande Obra. O que vocês humanos chamam de trabalho da natureza é a nossa parte da tarefa: Construir, dar forma e manter o modelo idealizado por Deus. Nada acontece por acaso. Aquilo que lhes parece obra do acaso é devido ao seu desconhecimento do que existe além desse mundo que vocês criaram, limitado à percepção dos olhos físicos. Para os olhos da mente, para a visão interior, a vida é muito mais complexa, bonita e organizada. Da mesma forma, temos companheiros que executam tarefas na água, no fogo e no ar. Somos os seres espirituais da natureza e trabalhamos a serviço de Deus. E sempre estivemos aqui, ajudando você no seu incessante trabalho de conservação deste lindo jardim. Você é extremamente importante e útil ao processo de criação. Todos nós juntos, elementais e humanos, mantemos essa parte da criação de Deus. Procure lembrar-se: Quantas vezes você pediu a Deus que chovesse, para aplacar a sede da terra e as ondinas, os elementais da água, entraram em ação, providenciando a chuva necessária para a umidificação da seiva, que aquecida pelos raios solares, fez brotar a vida e ajudou a desenvolver essas belas formas da natureza. A própria brisa, que muitas vezes refrescou o calor da sua pele curtida é providenciada pelos silfos e sílfides do ar, esses graciosos seres que delicadamente flutuam no éter, transportando partículas necessárias à vida e promovendo o movimento do ar, ora mais intenso na forma de vento; ora mais suave, como as brisas; ora violento como o vendaval, sempre refletindo aquilo que é produzido pela Grande Mente. Somos o espelho da mente universal e, portanto, da mente de vocês humanos, também. Quando todos os homens tiverem aprendido a respeitar e a viver em harmonia com a natureza, tratando-a com amor, esta lhe devolverá em dobro tudo aquilo de bom que deles tiver recebido. Na Grande Obra da Natureza, o homem não está só; nunca esteve e nunca estará. Apenas sua incompreensão, a sua limitada visão para as coisas verdadeiramente significativas da vida, a sua cegueira, o mantém isolado, solitário. Não porque realmente esteja só, mas porque assim se percebe, como aconteceu com você. Por isso foi necessário que você dormisse, abandonasse os limites do seu corpo físico, para que pudesse receber essa preciosa lição de vida. Ninguém está só em nenhum momento de sua existência. Apenas percebe-se só, sofrendo com a própria imagem mental que cria para si mesmo. Você criou uma imagem mental de solidão, fruto de sua limitada visão da vida. Sempre estivemos com você durante todos esses anos. Não importa que este jardim não tenha sido apreciado pelos humanos. Não é esse o objetivo de sua existência. A vida não gira em torno do homem. Isto é pura presunção, originada no orgulho e na vaidade humana. O homem deveria, acima de tudo, perceber-se como parte desse todo, como mais um obreiro da Seara Divina.
Neste jardim, muitos seres dos Reinos Elemental, Mineral e Animal cumpriram suas tarefas de aprendizagem, de evolução e especialização da vida. Aqui, nós, elementais, aprendemos a manter as formas idealizadas por Deus, concretizando-as; minerais se desenvolveram; formas vegetais foram mantidas como um treinamento para o sistema vegetativo mais complexo do Reino Humano. Entre todas as coisas existe uma ligação. A separatividade é uma percepção distorcida do homem, que se afastou de Deus...
Thimóteo estava boquiaberto, assim como seu corpo físico jazia boquiaberto, em sono profundo, sob a sombra da frondosa árvore. Nunca imaginara que o "seu" jardim fosse tão precioso. E, mais estranho ainda era receber estas informações daquela criaturinha que mais lhe parecia um pequeno inseto. Mas algo dentro dele lhe dizia que tudo aquilo era a mais pura verdade. Fazia sentido. Seu coração, pulsando firme e compassado foi tomado por uma imensa alegria, fazendo com que o seu corpo adormecido respirasse profundamente. Uma onde de orgulho preencheu o seu peito e, novamente para sua surpresa, tornou-se mais escuro. O pequeno gnomo esclareceu-lhe que não havia motivo para orgulho. Seria mais adequado perceber a perfeição da Obra Divina e sentir-se fazendo parte Dela. Realizando-a, não por si e para si, mas pelo Pai. Compreendendo a lição, a luz se fez na mente do jardineiro, tornando a sua energia novamente clara, como lhe era habitual. Thimóteo sentiu-se envergonhado e mudou novamente de cor. Percebeu que estava transparente. O que sentia mostrava-se na cor do corpo luminoso que apresentava agora. O gnomo lhe explicou que todos os seres, fora do corpo físico, ficavam assim, num corpo de luz ou de energia. Esta era mais uma informação nova para o velho jardineiro. Nunca é tarde para se aprender!, reconheceu ele, humildemente.
Continuando sua reflexão, Thimóteo lembrou-se de que, mesmo sendo um simples jardineiro diante dos senhores do casarão, imaginava que fosse mais importante do que os animais, os vegetais; mais importante do que as formiga, por exemplo. Mais importante do que aquele gnomo até então inexistente para ele e que agora lhe transmitia noções filosóficas do verdadeiro sentido da vida. Sempre acreditara que havia seres mais importantes do que outras. Crescera num mundo de senhores e servos e isto lhe parecia ser a ordem natural da vida. E agora aparecia-lhe aquela criaturinha mudando totalmente sua maneira de ver o mundo. Que coisa mais estranha! Como aquele "bichinho esquisito" podia saber tanta coisa? Indagou-se. E, mais estranho ainda, porque ele acreditava em tudo que ouvia?.. O "bichinho esquisito" explicou-lhe mais uma vez que o conhecimento não pertence a ninguém. Ele está aí. É o princípio inteligente, presente em toda a natureza, disponível para aqueles que se dispõem a entrar em contato com essa fonte inesgotável...
O jardineiro sentia-se cada vez mais maravilhado. Por sua vontade ficaria ali, indefinidamente, aprendendo mais e mais. Porém, como num sinal de alerta em sua mente consciente, sentiu que a sua hora de sono estava terminando e que precisava despertar. Além disso, se um dos patrões chegasse e o pegasse dormindo em hora de trabalho, seria despedido. Perguntou ao pequeno ser se poderia voltar outras vezes para aprender mais. O gnomo lhe disse que agora ele havia despertado para esta nova dimensão e aprendido "o caminho", o canal estava aberto para novas percepções e novas aprendizagens, até que ele não precisasse mais dormir para entrar em contato com aquele e com muitos outros universos. Mas isto levaria muitos anos ainda. Talvez em outro momento do tempo... em outra tarefa de vida...
Rapidamente, toda a cena foi se dissipando, à medida que Thimóteo despertava de seu profundo sono. Espreguiçou seu corpo velho e encarquilhado, curtido pelos longos anos de exposição ao sol. Ah! O Sol, aquele Ser que o ajudava diariamente a nutrir todas as plantas, agora se encaminhava para o horizonte onde, dentro de poucas horas, iria se esconder, prometendo, com certeza e responsabilidade, voltar no dia seguinte, ao longo dos meses, dos anos, dos séculos... infinitamente, fazendo a mesma coisa, em cumprimento da Lei Maior. Obrigado amigo Sol!, disse ele. Meu companheiro de tarefa!...
Que sonho estranho!, foi refletindo o jardineiro, enquanto se levantava do gramado. Sentia-se refeito, alegre alimentado. O sentimento de solidão havia desaparecido, substituído por uma paz interior que o mantinha em contato com a natureza ao seu redor. Agora sabia que fazia parte dela, e que, em suas tarefas diárias, recebia ajuda, da terra, da água, do sol e do ar. Não estava só. Ninguém está só, dissera o gnomo. Não existem jardineiros solitários!, repetiu para si mesmo. Esta certeza percorreu todo o seu corpo; cada célula compreendeu seu recado, registrando-lhe a informação, que se instalou certeira em seu coração.
Thimóteo recolheu as suas ferramentas de trabalho, voltando `a sua casa no fundo do quintal. Pelo caminho, foi pensando em quantos jardineiros existem no mundo, plantadores de plantas, de idéias... de sementes que irão crescer com a ajuda de todos... A grande equipe de Deus, cada um de nós, trabalhando na realização da Sua Perfeita obra...
Como o sol que já havia cumprido a sua tarefa diária, Thimóteo dormiu naquela noite, sereno e tranqüilo, com a certeza de que no dia seguinte teria uma gratificante e agora nova tarefa: CUIDAR DO JARDIM....
Em tempo: Nesta data 12/05/19, este Conto foi dedicado ao Sr. JOACYR CORREA Jardineiro e Funcionário da Prefetura Municipal de Nova Friburgo que, há 17
anos, com muito carinho e dedicação, cuida dos Jardins da PRAÇA MARCÍLIO DIAS, na Rotatória de entrada de Nova Friburgo, lindo cartão postal de
nossa cidade.
Nota; Este conto é baseado no conhecimento da Teosofia,
sobre o trabalho dos Seres Elementais, no Reinos da Natureza.
SUELI MEIRELLES
(*) Especialista em Psicologia Clínica - CRP 05/11601. MBA em Gestão de Projetos ( UGF - 1986)(Abordagem Transdisciplinar) nas Áreas de Desenvolvimento Humano, saúde Integral, Ecologia Integral e Educação para a Paz e Implementação de Projetos Sociais. UNIPA. Coordenadora de Organização do Pentagrama CIT – Colégio Internacional de Terapeutas, na Gestão 2016/17. Membro da ALUBRAT - Associação Luso Brasileira de Psicologia Transpessoal Fundadora e Coordenadora do Instituto Vir a Ser. Professora, Pesquisadora, Escritora e Palestrante.
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