“As
coisas más que são feitas sobre a Terra,
são praticadas por seres humanos.
Nós
não podemos pôr a culpa disso nas plantas
Ou
nos animais... Mas, se você
e eu não somos maus, quem é mau?”
(Donovan
Thesenga)
Embora nossa cultura nos imprima uma
visão dualista, segundo a qual as pessoas são totalmente boas ou más, não é
isto o que ocorre dentro dos seres humanos. O bem e o mal coabitam em nosso
interior, ocupando três camadas distintas: O Eu Idealizado (aquilo que queremos
que os outros saibam que nos somos), o Eu Inferior (aquilo que não queremos que
os outros saibam que nos somos) e o Eu Superior (aquilo que muitas vezes nem
sabemos que nós somos).
O Eu Idealizado corresponde à nossa
personalidade, à máscara que utilizamos na vida em sociedade, na tentativa de
sermos amados e aprovados por aqueles com quem convivemos, como se não
pudéssemos existir, independentemente da opinião alheia, espelho através do
qual buscamos a nossa auto-imagem idealizada.
Nosso Eu Idealizado luta, mente e esconde tenazmente os nossos defeitos,
temendo a crítica e a desvalorização social, que imaginamos que irá nos atingir
e nos abater, se nossos erros forem descobertos. Na tentativa de sustentar esta
máscara, muitos de nós acabamos por conseguir justamente o efeito contrário, já
que, em situações de alta pressão social, esta casca tende a se romper,
colocando à mostra os defeitos, a tanto custo escondidos.
O Eu Inferior corresponde a todos os
aspectos de nossas personalidades que tememos que os outros venham a descobrir:
Nele estão a inveja, a infidelidade, o orgulho, a vaidade, a negligência, a
ganância, e todas as demais imperfeições humanas, sustentadas por sentimentos
de raiva, medo, tristeza, dor, ódio, e que tanto mal fazem a própria
humanidade. Apesar de estarem polarizados negativamente, e realmente causarem
mal, estes defeitos constituem potenciais de energia psíquica igualmente úteis
para o desenvolvimento humano. O grande segredo da transformação interior
consiste exatamente em aceitarmos, dentro de nós mesmos estes sentimentos,
conhecê-los nos contextos em que foram criados, para que possamos exercer sobre
eles a força de vontade necessária para transformá-los em motivações para o
nosso crescimento interior. O que dificulta este processo é justamente a idéia
de que teremos que anular nossos desejos, para nos transformarmos em seres
humanos insípidos, destituídos do prazer de viver e de usufruir tudo aquilo que
a vida pode nos oferecer de bom. Esta é uma idéia distorcida sobre a evolução
humana, que faz com que a transformação interior seja sentida como morte ou
aniquilação de si mesmo. Na luta por combater estes fantasmas internos,
acabamos percebendo-os em nossos semelhantes, o que origina as crises de
relacionamento, nos diferentes níveis em que elas ocorrem, sejam no contexto
familiar, profissional, social, nacional ou internacional.
Quando nos abrimos corajosamente
para o autoconhecimento, nossos fantasmas internos tornam-se menos ameaçadores,
e podemos começar a não combate-los – o que seria simplesmente inútil - mas a
compreendê-los em suas necessidades e a atender a essas necessidades, através
de comportamentos mais construtivos, gradualmente desenvolvendo novos valores
de vida.
Quando descobrimos a coragem de
empreender a travessia dos pântanos da nossa alma, descobrimos o caminho para o
Eu Superior, onde o melhor de nós mesmos nos aguarda, como um prêmio pelo
esforço empreendido. A descoberta dessas qualidades já desenvolvidas funciona
como estímulo e apoio para a decisão de continuarmos o processo de
transformação do Eu Inferior, pouco a pouco somando estes potenciais
recém-transformados àqueles recém-descobertos, até que todo este potencial
positivo recém-agregado impulsione cada um de nós para a manifestação exterior daquilo
que realmente viemos ser. Encontrar a missão existencial traz-nos o prazer da
realização pessoal, sem a qual todas as conquistas tornam-se satisfações
passageiras, que o ego deixa para trás, em busca de novas metas ilusórias. Ao
contrário do que pensávamos antes, a descoberta do Eu Superior nos religa com a
verdadeira paz interior e com o verdadeiro prazer de viver, agora livre das
ameaças inconscientes de sermos descobertos, a qualquer momento, em nossas fantasias de sermos
perfeitos, segundo os modelos culturais que nos foram transmitidos.
Quando descobrimos que não somos nem
maiores nem menores do que aquilo que realmente somos, do ponto de vista
evolutivo, podemos objetivamente, combater o mal, não no mundo à nossa volta ou
nos nossos semelhantes, mas naquela parcela de mal pela qual somos
responsáveis, através de nossos próprios comportamentos. Ao mesmo tempo em que
desistimos de mudar o mundo a nossa volta, percebemos que podemos mudar o nosso
mundo interior, reativando uma força amorosa e contagiante de acolhimento
àqueles que se dispõem a esta difícil travessia para o mundo melhor que todos
nós desejamos.
SUELI MEIRELLES - Professora, Pesquisadora e Especialista em Psicologia Clínica. Consultora em desenvolvimento Humano, Saúde Integral, Ecologia Integral e Educação para a Paz. Escritora e Palestrante.