Naquele dia, Rafa estava muito irritado. Seus pais só ficavam
lhe cobrando uma porção de compromissos entediantes. Que Saco! Dizia ele. Todo
dia era a mesma coisa. Não agüentava mais. A noite, Rafa estava exausto, com
tantas pressões. Depois de muitas horas gastas nos jogos online, dos quais
tanto gostava e o tiravam do tédio diário, já alta madrugada, ele foi dormir,
sonhando com “O mundo do não faz nada”. Ahh! Como seria bom, ter tempo livre
para fazer somente o que gostava. Porque o mundo era tão chato? Seus amigos
eram da mesma opinião. Os adultos complicavam a vida, criando regras inúteis,
tarefas mil e compromissos desnecessários. Por isso eram tão aborrecidos, quase
sempre discutindo uns com os outros. E ainda nos chamam de “aborrecentes”.
“Aborrecentes” são eles! O mundo poderia ser tão simples! Pensava Rafa, no auge
do seu mau humor. Ansiando por uma saída para o problema, Rafa desligou seu
notebook e após alguma dificuldade em conciliar o sono, pelo excesso de
estímulos luminosos, mergulhou num sono profundo e conturbado e na surpreendente
experiência de atravessar o portal do “Mundo do não faz nada.” Uma sensação de
profundo alívio, tomou conta de todo o seu ser; para dizer a verdade, de cada
célula do seu corpo, trazendo-lhe uma deliciosa sensação de liberdade, há muito
não sentida. Enfim estou livre de toda aquela chateação,
pensou alegremente, surpreso com a liberdade recém-conquistada. Neste novo
mundo, seus pais estavam misteriosamente ausentes, e ele sentiu-se
confortavel, deitado em sua cama, tendo nas mãos o controle remoto da TV do
seu quarto e, mais adiante, o notebook que deveria ser utilizado para as aulas
online, durante a quarentena do Corona Vírus. Olhou o celular, para ver as
horas, mas este não acendeu. Estava desligado. Levantou-se, ainda com preguiça,
em busca do carregador e conectou- o na tomada, junto à cama, mas o celular nem
deu sinal de vida. Achou estranho, mas como também ainda estava meio “desligado”,
pegou o controle remoto e ligou a televisão, mas esta também não acendeu.
Estranho! Pensou ele. Acho que estamos sem luz! Ainda sonolento, levantou-se e
clicou no interruptor, mas a luz do teto não acendeu. Ehh! Estamos sem
luz, constatou ele.
Enquanto aguardava que
a luz retornasse, foi até o banheiro para fazer a higiene pessoal que seus pais
tanto lhe cobravam. Olhou-se no espelho e viu suas grandes olheiras,
testemunhas das noites mal dormidas e o cabelo despenteado. Ainda disposto a
rebelar-se contra todas as regras que lhe eram impostas, já que seus pais
estavam ausentes, decidiu que não iria pentear os cabelos. Foi até a cozinha
para comer algo, mais pela cobrança paterna do que pelo apetite. Costumava
comer sanduiches à noite e ao acordar, não sentia fome. Decidiu que também não
iria comer nada. Afinal, estava livre de todas estas regras bobas. Olhou pela
janela e viu que o dia estava bonito. Decidiu pegar a sua bicicleta e dar uma
volta. Talvez encontrasse algum amigo. Assim pensando, foi até a garagem, onde
sua bicicleta ficava encostada na parede ao fundo. Lembrou-se que havia muito
tempo que não pedalava. Não sentia disposição para exercícios físicos, até
mesmo porque, na maioria das vezes, dormia até a hora do almoço. Quando chegou
perto de sua bike, percebeu que uma aranha havia feito ali a sua teia. Pegou um
pano meio sujo, que ele mesmo havia jogado no chão, tempos atrás e
removeu a teia de aranha, jogando o pano no chão, novamente. Esperava que sua
mãe ou a faxineira acabassem recolhendo. Realmente estava precisando liberar o
seu mau humor. Porém, ao olhar para o pneu dianteiro, viu que estava vazio.
Droga! Lamentou-se. Teria que ir primeiramente ao borracheiro, para enchê-lo.
Ainda bem que havia um bem na esquina da sua rua. Decidiu ir empurrando sua
bike até lá, porém, para sua surpresa, a loja estava fechada. Tentou lembrar-se
do dia da semana! Sim! Era um dia de segunda-feira. Teria havido algum
problema? Ainda cheio de interrogações, viu um colega sentado na praça em
frente e, encostando a bicicleta na porta fechada da loja, caminhou até lá:
_Ei!, Cara, tudo bem?
Perguntou para puxar assunto.
_Bem nada, cara! Não sei o que está acontecendo. Está tudo
fechado, sem luz, sem TV, sem celular, sem notebook e também não vejo meus pais
para pedir ajuda.
_EH! Respondeu Rafa, muito desanimado. Vi um portal dizendo que
aqui é o “Mundo do não faz nada”!
Sentindo-se muito desanimado, Rafa deixou-se cair no banco,
ao lado do colega. Sentia um tédio total.
_Você quer ir lá para casa, me fazer companhia? Perguntou!
_Sim, respondeu Beto, pensando que seria melhor do que ficar
ali, sentado na praça deserta. Pelo menos, poderiam conversar ou jogar algum
jogo, mas lembrou-se também que, havia muito tempo, tinha-se desfeito dos jogos
interativos não eletrônicos, porque eram coisas do passado. Levantou-se e
seguiu Rafa até sua casa. Quando lá chegaram, Rafa lembrou-se que não tinha a
chave para entrar, o porteiro eletrônico não funcionava e o zelador do prédio
não viera trabalhar. Estavam literalmente na rua... O que fazer? Rafa e Beto
começaram a sentir-se muito desconfortáveis, como se uma espécie de estado de
alerta começasse a se instalar em suas mentes, corações... Fazendo com que os
batimentos cardíacos se acelerassem. E se viesse a passar mal? Onde seria
socorrido? Será que os serviços essenciais estavam funcionando? Pela quantidade
de lixo antigo nos cantos das calçadas, percebeu que não. Somente os vermes
caminhavam ativos pelo lixo apodrecido, em busca de alimento.
_Será que os bichos não faziam parte do “Mundo do não faz
nada”, indagou a si mesmo. Mas não tinha tempo para reflexões. Seu estômago
dava sinais de fome, pela proximidade da hora do almoço. Mas almoçar, onde? O
que? Como? Seu desespero aumentou e Rafa perguntou ao amigo de infortúnio, qual
seria a solução. Beto apontou para um terreno baldio, em frente a praça, onde
havia crescido uma frondosa mangueira, dentro da perfeita Lei da Natureza e ofertava
seus saborosos frutos a quem gostasse de mangas e também a quem não gostasse de
mangas... Apenas cumprindo seu propósito de vida. Num de seus galhos, um João
de Barros, preparava o ninho para a sua companheira e logo que estivesse
pronto, nele colocaria seus ovinhos para uma nova ninhada. Rafa pensou que
realmente os bichos não faziam parte do “Mundo do não faz nada”. Os dois
rapazes caminharam até lá, pegando, no chão, as mangas já amadurecidas e
dedicando-se ao “trabalho” descascá-las. Dois frutos para cada um foram
suficientes para aplacar, temporariamente, a fome voraz da adolescência.
Quando voltaram ao banco da praça, mais jovens se reuniam
ali. Falavam todos ao mesmo tempo, querendo ser ouvidos e atendidos em seus
questionamentos sobre o que estava acontecendo, cada vez mais preocupados com a
possibilidade de passarem a noite ao relento. Haviam saído pela manhã, sem
agasalhos, não tinham cobertores e nenhum deles se preocupara em pegar as
chaves de casa, ao sair, conforme seus pais sempre recomendavam. Não tinham
outra opção a não ser se agruparem no quiosque central, para atravessarem uma
longa noite insone, tensa e desconfortável, totalmente diferente de suas
confortáveis camas, com travesseiros fofos e cobertas aconchegantes.
Ao chegarem ao quiosque, uma nova surpresa os aguardava. Por
incrível que pareça, ali estavam mendigos de diferentes idades, que haviam
catado alguns restos de alimentos nas lixeiras, e se enroscavam em seus velhos
e sujos cobertores. Ao verem os jovens entrando, solidariamente abriram espaço
para eles no grupo, e começaram a conversar. Apesar do cheiro bem desagradável,
aqueles homens traziam dentro de si mesmos, muitas experiências de vida e
muitos arrependimentos. Alguns contaram suas tristes histórias e falaram sobre a ausência de estrutura familiar e falta de oportunidades; outros falaram sobre
as muitas oportunidades de estudo e trabalho que haviam deixado passar, por
quererem permanecer no “Mundo do não faz nada”. Agora, alguns afogavam suas
mágoas no álcool e outros fugiam da triste realidade, através do uso de drogas.
Os jovens ficaram muito impressionados com seus relatos...
Os últimos acontecimentos haviam deixado os jovens emocionalmente muito abalados. Ahhh! Que saudade de casa!... Pensou Rafa,
começando um choro entrecortado de lamúrias, no que foi seguido pelos outros. Que
saudades da família! ...Quanto tempo iria durar aquele martírio? Perguntavam-se
uns aos outros. Qual seria a forma de sair daquele pesadelo sem fim? Como um
lampejo luminoso, este pensamento atravessou rapidamente o cérebro do jovem
Rafa, lembrando-se de beliscar um dos colegas, para ver se este estava
acordado. A estratégia funcionou. Para sua surpresa, o colega desapareceu da
sua presença. Imediatamente beliscou outro e este também desapareceu e assim
sucessivamente, até que Rafa resolveu beliscar-se com bastante força, para por
fim ao seu tormento. Como num passe de mágica, viu-se deitado em sua
confortável cama, bem no momento em que sua mãe entrava em seu quarto,
chamando-o para o café da manhã. Havia sido realmente um pesadelo. O pior de
sua vida. Imediatamente, Rafa levantou-se, deu um grande beijo no rosto
surpreso de sua mãe, indo ao banheiro para a higiene matinal. Com imensa
alegria abriu o chuveiro elétrico, que liberou de pronto a água morna. Ainda
tinha lembrança do odor fétido dos corpos suados, sem banho... Rafa não se
recordava de ter tomado um banho tão gostoso, desde que entrara na
adolescência. Sempre havia considerado que tomar banho era uma perda de tempo
útil, que poderia ser dedicado ao laser. Mas agora, perguntava-se como seria se
também a água não chegasse às adutoras e hidroelétricas e pensou como as
pessoas que lá trabalhavam eram importantes. Gratidão a elas!... Terminado o
banho, Rafa olhou-se no espelho, penteando seus cabelos com capricho e
escovando os dentes. Afinal, tinha pente, espelho, escova, pasta, sabonete e
uma toalha felpuda para se enxugar. Neste momento, sentiu-se muito grato aos
pais, que lhe proporcionavam tudo isso, além dos altos custos com as
mensalidades escolares e o material didático, tratamento ortodôntico... Poxa!
Como tivera sorte de nascer num lar formado por pais conscientes. De imediato
lembrou-se do João de Barros construindo o ninho para sua única companheira.
Ehhh! Os animais estão mais conscientes das leis da vida do que os seres
humanos. Olhando-se novamente no espelho, percebeu que ficara rubro de vergonha
e descobriu que estava despertando sua consciência para o real sentido da vida.
Estava pronto para amadurecer, desenvolver seus potenciais de realização e
tornar-se útil à sociedade, como seus pais lhe ensinavam.
Alegremente caminhou até a cozinha, onde sua mãe já havia
colocado o leite e o achocolatado de sua preferência. Vendo que faltavam ainda
os talheres junto às xícaras, prontamente levantou-se para pegá-los na gaveta,
enquanto seus pais se entreolhavam surpresos, sem compreenderem o motivo da
súbita mudança de comportamento de filho. Quando sua mãe fez um breve
agradecimento pelos alimentos, pedindo bênçãos para quem os plantou, quem os colheu
e os preparou, Rafa ficou em silêncio, de olhos baixo e úmidos, pela primeira
vez pensando que esse alimentos custavam o trabalho de muitos, até chegarem à
mesa de sua casa. Terminado o saboroso café da manhã, Rafa olhou para o relógio
da parede, e levantou-se rapidamente, dizendo que iria voltar para o seu
quarto, para a aula online daquele dia. Rafa estava com quinze anos e cursava o
último ano do ensino fundamental.
Abrindo o aplicativo da aula, Rafa pensou o quanto estes
novos recursos estavam sendo úteis durante a quarentena. Se eles não
existissem, estariam todos impossibilitados de aprender. Pensou também como
utilizava pouco o mundo virtuaL, para aprender coisas úteis. Quanta perda de
tempo!... Gostava de assistir aqueles vídeos em que os personagens disputavam
força física e conquistavam territórios imaginários, às custas de procedimentos
escusos... Novamente sentiu vergonha e seu rosto ficou corado. Seria a cor da
Nova Consciência?...
Terminada a aula, entrou
em contato com seus amigos mais próximos pelo vídeo do seu celular. Outro
aplicativo bem útil, em tempos de quarentena. Pelo menos podiam se ver e conversar.
Queria contar a eles o estranho sonho da noite anterior. Qual não foi a sua
surpresa quando seus colegas disseram que haviam tido o mesmo pesadelo. Seria
isso possível? Pessoas se encontrando durante o sono, no mesmo lugar? Propôs
aos colegas pesquisarem para saber. Encontraram um site que falava sobre
“Sonhos Compartilhados”[1]
e ficaram conversando sobre as conseqüências de tal experiência:
_Ehh! Cara! Foi um baita susto! Imagina se aquilo fosse real?
Teríamos morrido em bem pouco tempo. E continuou: _Hoje, pela manhã, meu pai
comentou com minha mãe que 522.000 empresas, no país, fecharam suas portas e
isto gerou muito desemprego. Será que estamos caminhando para o “Mundo do não
faz nada”? Como as pessoas vão viver sem trabalho? Como vão sustentar os seus
filhos?
Rafa lembrou-se de uma frase lida no site Vivência em Cura,
percebendo também a utilidade de buscar informações úteis à vida, na Internet:
“O sonho
compartilhado também pode servir como uma metáfora da concepção de que todos
nós humanos da Terra comungamos de um mesmo “sonho” para criar a realidade
deste planeta.”
_Sim! Acho que precisamos começar a construir um mundo melhor; precisamos
ajudar de alguma forma, disse Beto. Podemos recolher alimentos e entregar nas
instituições. Vamos? Eu fiquei muito impressionado com a nossa experiência.
Realmente, sem trabalho, a vida vira um pesadelo! Quando eu pensava em ficar a
toa, não imaginava que o meu laser dependia do trabalho de muitas outras
pessoas. Que burrice a minha! Estou sentindo vergonha do meu egoísmo.
_Eu também! Disse outro colega, também muito sem jeito. Podemos iniciar alguns movimentos de solidariedade na nossa turma, através do
grêmio estudantil. Afinal, temos a força da juventude. Podemos
transformar nossos sonhos em realidade, porque temos muito tempo de vida pela
frente. Já imaginou se todos os nossos colegas aderirem ao nosso sonho de criar
uma nova realidade, neste planeta?... E assim combinados, com grande entusiasmo,
iniciaram os contatos necessários.
Com a tarde livre, Rafa entrou no escritório do pai, que
alternava os horários de suas atividades
online, como Advogado, com a esposa Psicóloga, que agora atendia online. Ficou ali, observando seu pai dando entrada em algumas petições em
PDF, depois de instalar um aplicativo que validava seu acesso ao Fórum Virtual
e ficou imaginando como seu pai e sua mãe poderiam continuar trabalhando,
durante a quarentena, sem esses novos recursos. Novamente sentiu-se grato...
Sua família havia sido poupada desse sofrimento...
No pequeno intervalo para o café da tarde, sentou-se à mesa
com eles e relatou o seu estranho sonho, como esta experiência havia mudado sua
maneira de ver o mundo e os projetos solidários que pensava desenvolver com
seus colegas. Os pais de Rafa se levantaram
e o abraçaram, afetuosamente, compartilhando com o olhar uma frase silenciosa: _Que
pesadelo mais abençoado!...
Algumas lágrimas de gratidão escorriam dos olhos dos três
familiares. Eles conversaram longamente sobre o que todos estavam vivendo. Nada
seria como antes! A transformação social seria intensa. Algumas atividades
profissionais deixariam de existir e outras iriam surgir. Tudo isto exigiria
muito estudo e muitas adaptações por parte de cada pessoa; exigiria cada vez
mais amor pela tarefa!... Velhos sonhos iriam morrer; novos sonhos iriam nascer e ganhar força; pesadelos serviriam para reflexões profundas, vindas
do inconsciente coletivo da sociedade que despertava e eles sabiam que teriam
que deixar ir embora o medo da mudança; precisariam
reinventar-se e nutrir a esperança de dias melhores. Acima de tudo sabiam que
isto só dependeria do esforço e dedicação de cada um... Mãos à Obra!!! Disseram
em uníssono, lançando a semente familiar de um Novo Tempo.
Sueli Meirelles, em Nova Friburgo, 20 de julho de 2020.
Psicóloga Transpessoal, Pesquisadora, Escritora e Palestrante.
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Consciência Planetária.
Whtasapp: 55 22 999557166
[1]
Link para o Site Vivência em Cura: https://www.vivenciaemcura.com.br/conteudo/integrando-os-sonhos/sonhos-compartilhados/